domingo, 12 de outubro de 2014

A dicotomia do corpo humano



O ciclo vital do homem segue uma linha que, normalmente, se inicia no nascimento do novo ser e termina com a morte deste, na velhice. Isto seria o “normal”, mas como o comum dos mortais sabe, nem sempre decorre desta maneira.
Muitas vezes, em pleno esplendor físico, sucedem situações que nos revelam o quão frágil é o ser humano. Morte súbita, acidentes, tumores, doenças degenerativas, entre tantas outras coisas, fazem com que de estarmos bem, passamos a estar mal ou a nem sequer estar.
Se há coisa que sei que faz parte da vida, mas que me custa imenso a compreender, é a morte de uma criança ou de um jovem. Não tem sentido que, na fase mais forte da vida, mesmo em pessoas não tão jovens, o nosso corpo ceda, quebre e morra. Esta é, a meu ver, a grande fragilidade da máquina que o nosso corpo é.
Pelo contrário, temos situações que ocorrem quando já passou o tempo da máxima (ou sequer da) robustez física do nosso corpo, mas que este apresenta uma resistência de maratonista, aguenta sempre mais um bocadinho. Como enfermeiro de um Hospital de Larga Estância foram já muitos os casos em que vi o fechar do ciclo vital das pessoas. Isso não me incomoda, permitir uma morte digna, a meu ver, é tão importante como salvar uma vida. Principalmente quando a vida já não pode ser salva (por isso não entendo os casos em que se rejubila por um salvamento, quando o que se salva é um corpo sem vida…mas isso seria tema para outra discussão).
Porém, admito que há algo que ainda me impressiona, que é a capacidade do corpo resistir, mesmo quando a pessoa já desistiu há muito. Alguns casos desses, simplesmente com o acamar de um corpo e o apagar gradual da pessoa, chegando a um ponto que não sabemos se aqueles olhos abertos nos querem dizer algo (e o quê) ou se são, simplesmente, o reflexo de um corpo vazio. Se a “alma” está ou não está presente. O que sei é que o corpo está, sofrendo lesões e deformações cada vez mais difíceis de curar e corrigir. Esperando que uma infecção ganhe a essa resistência ou que o corpo se apague de vez e permita o fechar do ciclo. No entretanto, passam meses e anos em que o corpo se torna uma prisão.
Há outros casos, por exemplo, de pessoas com cancro, que a resistência não se dá durante tanto tempo, mas que se prolonga o suficiente para permitir a deformação corporal. Casos em que os doentes estão conscientes. Casos em que muitas vezes a dor maior, que nenhum medicamento pode tirar, é a de ter consciência do que se está a passar. Sou e serei sempre a favor de cuidados paliativos, muitas vezes confundidos erroneamente com eutanásia. Quanto a esta, não me merece qualquer tipo de comentários, nem a favor nem contra. É proibida, logo está fora do meu leque de cuidados a prestar.
Ressalvo que todos os casos merecem ou deviam merecer o cuidado e atenção máximos dos profissionais de saúde. Por exemplo, ensinaram-me na universidade a falar para os doentes, mesmo que estivessem num estado comatoso. Não o aprendi a fazer lá, foi algo que fui aprendendo a fazer desde que comecei o meu caminho diário como enfermeiro.

É esta ambivalência o aspecto com o qual mais me custa lidar no meu dia-a-dia profissional. Sermos frágeis quando devíamos ser fortes, e fortes quando devíamos ser frágeis.

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