segunda-feira, 18 de setembro de 2017

O último suspiro

Sou enfermeiro, sou duma classe de profissionais que estão presentes na vida de todos os utentes/doentes do nascer ao morrer.
Eu próprio já tive a possibilidade de assistir a esse maravilhoso (para alguns) momento que é a vinda ao mundo dum novo ser. Estava eu em estágio, assisti a dois partos, uma experiência que ainda hoje guardo na memória como se tivesse sido ontem.
Pelo contrário, foram já muitas as vezes em que assisti ao fim da vida, sendo o muito sempre uma palavra tão relativa…é muito para quem nunca assistiu a tal momento, será pouco para quem diariamente vê isso acontecer. Mas foram algumas.
Antes de prosseguir, reitero que tudo o que escrevo aqui, seja de que tema for, é a minha visão, a minha opinião ou a minha maneira de sentir as pessoas, os momentos ou as coisas. Poderá e não será a de outras pessoas.
Não escapando ao ciclo natural da vida, já perdi pessoas como quase toda a gente. Já vi falecer todos os meus avós, perdas muito sentidas, perdas pungentes, perdas muito saudosas. Foram partidas físicas, mas também de todas as lembranças dos momentos vividos anos a fio. Porém, foram experiências que nunca me prepararam para as perdas profissionais. Nem estas para as pessoais.
Há dois anos mudei de serviço, há mais de dois anos que não me morre um paciente. Contudo, essa não foi a minha realidade durante sete anos. Durante esses anos, já não sei dizer ao certo quantos doentes vi morrerem. Uns cujo fim era esperado, outros em que não o era.
Lembro-me, ainda hoje, das feições e do nome do primeiro paciente que perdi. Lembro-me do que foi feito, em vão, para o impedir. Foi o primeiro último suspiro que vi. Foi a primeira vez que senti o calor humano transformar-se num frio gélido, foi a primeira vez que vi olhos cheios de vida transformarem-se num olhar vazio.
É muito diferente apenas vermos um corpo inerte de vermos um corpo passar dum estado de vida para um estado de inércia. Não consigo encontrar palavras para explicar o que se sente, ou melhor dizendo, o que sinto. Há quem diga que uma pessoa se habitua. Talvez nos habituemos a ver cadáveres, agora a ver o momento exato em que a vida acaba, acho que não há quem se habitue a isso.
Não acredito em fantasmas, mas muitos dos pacientes que perdi (alguns deles com anos de convivência) vaguearam pelos meus sonhos, pelos meus pensamentos quando acordado, pelas minhas lembranças. Não sendo meus familiares, cada um deles significou para mim uma perda, por muito que as lágrimas não tenham caído. Assisti ao último suspiro de familiares de outros, esse é, talvez, o maior fardo que tive que suportar.
E não, não há nenhuma cadeira na Universidade que nos ensine a lidar com a morte dum paciente e com todos os sentimentos inerentes a ela. E não, não temos um botão “On/Off” que nos permita desligar os nossos pensamentos/sentimentos quando entramos ou saímos do local de trabalho.

O Jorge enfermeiro é o mesmo que no dia-a-dia se dedica de corpo e alma àqueles (e àquilo) de quem gosta e ama. Mas, cada vez mais, a minha profissão molda a minha maneira de ser e agir. Por muito que diga que não trago trabalho para casa, e acreditem que tento fazer por isso, é impossível que muito do que sinto e passo no meu trabalho como enfermeiro não me acompanhe para fora daquelas paredes. 

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