segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Criminalização do abandono hospitalar do idoso...uma questão pouco linear.





Recentemente foi alvo de discussão no Parlamento um projeto de lei sobre crimes contra os idosos, entre os quais o abandono. Quando se fala em abandono, falamos da triste realidade do abandono hospitalar, em que as pessoas são “entregues” nas instituições, delegando-se no Estado a decisão sobre o futuro delas.
A proposta foi, talvez de forma surpreendente, chumbada. A meu ver é uma decisão aceitável e creio que fundamento a minha opinião de forma racional e não sentimental, com sentido de justiça e ético.
À primeira vista, se vivêssemos num mundo lógico, seria o primeiro a bradar aos céus o chumbo deste projeto de lei. Claro que sou contra o abandono dos idosos, claro que acho que deve haver lei a proteger as pessoas que estão em situações de maior fragilidade. Agora, antes de se criminalizar o que quer que seja, tem que se definir muito bem o que estamos a falar.
O que se considera por abandono? Quando se considera abandono? Os motivos que o suscitaram? Estas questões e muitas outras podem e devem ser colocadas para se tentar perceber um pouco a magnitude da questão. Isso e colocarmo-nos no lugar dos outros.
Como profissional de saúde, considero a criminalização do abandono um pau de dois bicos. Pode, hipoteticamente, levar a uma menor taxa de abandono de idosos. Porém, levará de certeza a uma desresponsabilização por parte dos profissionais quanto ao assegurar uma solução segura para o idoso, passando a pasta para as famílias, seja intra ou extra hospitalar. Prefiro ter problemas e andar até à última para arranjar uma solução, que ter na mão o poder de dizer à família “resolvam, senão vão presos”.
O abandono, atualmente, dá-se em situações em que o idoso se torna mais dependente e começa a interferir nas rotinas da família (em contexto domiciliário) ou quando um idoso que era independente é internado e se torna dependente, obrigando a uma readaptação das famílias. Seja de que forma for, temos a dependência como origem aparente do abandono, mas, a meu ver, é a alteração da estrutura familiar a causa principal.
E de que têm medo as famílias? Que não tinham há anos atrás em que se cuidava dos mais velhos. Para explicar isto aprofundadamente, é preciso uma discussão alargada do problema.
Em primeiro lugar, a mudança do papel da mulher na sociedade, antes cuidadora de filhos, pais e sogros, hoje trabalhadora com todo o direito. Fato que não interfere apenas com a educação dos mais novos, mas também com outras importantes implicações.
Em segundo, a crise financeira e as exigências sociais aumentadas na educação dos mais novos e mesmo no cuidar dos mais velhos. Hoje em dia, por várias razões, poucas são as pessoas que se podem dar ao luxo de se despedirem ou pedirem licença sem vencimento para ficarem a cuidar de outros. Como dizer a um casal, com salário mínimo e um filho, que tem a obrigação de cuidar dum idoso senão vão presos ou pagam multa?
Em terceiro, como obrigar alguém a cuidar dum pai ou mãe que nunca o foram durante toda a vida? Nem toda a gente teve bons pais para se verem obrigados a serem “bons” filhos.
Em quarto, quinto, sexto e podíamos seguir, não faltarão “ses” para colocar em causa o que nos pode parecer tão evidente.
Claro que há respostas a nível social que atenuam o efeito duma situação destas no seio familiar. Algumas reais, algumas imaginárias, algumas demoradas, algumas que nunca acontecem…é aqui que eu considero haver muito caminho para desbravar, numa sociedade gradualmente mais envelhecida. Faltam respostas rápidas, eficazes e palpáveis, que garantam segurança e conforto, quer aos idosos quer às suas famílias.
O que eu acho que deve haver é uma reeducação sobre as responsabilidades quer das equipas interdisciplinares, quer da família. Reforçar que é o trabalho conjunto das duas que permitirá encontrar a melhor solução para a pessoa dependente.
Com tudo o que disse não nego a existência do real abandono dos idosos. Existe, é verídico. Contudo, antes de se proceder à sua criminalização, é necessário criar condições para que se possa separar o trigo do joio. Eliminando todos os “ses”, de modo a não mandarmos para o “corredor da morte vítimas inocentes”.

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