quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Almas despidas


Vivemos uma época em que os corpos se despem com uma facilidade assombrosa, em vários contextos do dia-a-dia.
E eu, por vias do meu trabalho, vejo a natureza humana diariamente, forçada sempre por uma condição de doença. Muito diferente do que se assiste nas redes sociais, na praia, na rua ou onde for. Corpos ausentes da beleza de outros tempos, marcados pelo passar dos anos, corpos carregados de experiências de vidas, muitas delas duras, corpos lesados pelas mais variadas doenças ou lesões.
Contudo, o que mais me toca no lidar diário com os meus pacientes é a simplicidade com que eles despem as almas perante desconhecidos. Fazem o que a maior parte das pessoas tem renitência em fazer. Numa idade avançada, com limitações que nos fazem depender de alguém, as pessoas que nos cuidam ganham um papel relevante. É essa a beleza que sinto ao cuidar de alguém, a confiança que pessoas que nos são estranhas depositam em nós.
Creio que é a empatia que geramos que nos faz ganhar o respeito e o crédito dos nossos doentes, muitas vezes logo no primeiro contato. E é aí que, mais que cuidadores, nos tornamos confidentes…de vidas passadas, de tragédias familiares, de alegrias desfeitas pela linha da vida, de cicatrizes marcadas por ferros em brasas. Muitas vezes, vivemos o drama de quem vê a perspetiva do regresso a casa, aquele porto seguro que todos gostamos de voltar ao fim do dia, como o regresso ao inferno. É o ser enfermeiro que me permite ter a real noção que em pleno século XXI ainda há muita gente a viver em condições do século XIX. Surreal, mas real.
Numa sociedade cada vez mais fútil, é curioso o contraste entre a facilidade com que mostramos o nosso exterior e a dificuldade com que nos revelamos a alguém. Será que cremos que o que aparentamos vale mais do que o que somos? Será que só damos valor ao que realmente importa quando envelhecemos? Não esquecendo que o fazemos cada dia que somamos ao ciclo da vida.
Por tudo o que referi, vou perdendo medo a envelhecer, aceito o passar dos anos com naturalidade, receando mais as limitações que as rugas, o tempo perdido que as dores ósseas.