Sou enfermeiro, sou duma classe de profissionais que
estão presentes na vida de todos os utentes/doentes do nascer ao morrer.
Eu próprio já tive a possibilidade de assistir a esse
maravilhoso (para alguns) momento que é a vinda ao mundo dum novo ser. Estava
eu em estágio, assisti a dois partos, uma experiência que ainda hoje guardo na
memória como se tivesse sido ontem.
Pelo contrário, foram já muitas as vezes em que
assisti ao fim da vida, sendo o muito sempre uma palavra tão relativa…é muito
para quem nunca assistiu a tal momento, será pouco para quem diariamente vê
isso acontecer. Mas foram algumas.
Antes de prosseguir, reitero que tudo o que escrevo
aqui, seja de que tema for, é a minha visão, a minha opinião ou a minha maneira
de sentir as pessoas, os momentos ou as coisas. Poderá e não será a de outras
pessoas.
Não escapando ao ciclo natural da vida, já perdi
pessoas como quase toda a gente. Já vi falecer todos os meus avós, perdas muito
sentidas, perdas pungentes, perdas muito saudosas. Foram partidas físicas, mas
também de todas as lembranças dos momentos vividos anos a fio. Porém, foram
experiências que nunca me prepararam para as perdas profissionais. Nem estas
para as pessoais.
Há dois anos mudei de serviço, há mais de dois anos que
não me morre um paciente. Contudo, essa não foi a minha realidade durante sete
anos. Durante esses anos, já não sei dizer ao certo quantos doentes vi
morrerem. Uns cujo fim era esperado, outros em que não o era.
Lembro-me, ainda hoje, das feições e do nome do
primeiro paciente que perdi. Lembro-me do que foi feito, em vão, para o
impedir. Foi o primeiro último suspiro que vi. Foi a primeira vez que senti o
calor humano transformar-se num frio gélido, foi a primeira vez que vi olhos
cheios de vida transformarem-se num olhar vazio.
É muito diferente apenas vermos um corpo inerte de
vermos um corpo passar dum estado de vida para um estado de inércia. Não
consigo encontrar palavras para explicar o que se sente, ou melhor dizendo, o
que sinto. Há quem diga que uma pessoa se habitua. Talvez nos habituemos a ver
cadáveres, agora a ver o momento exato em que a vida acaba, acho que não há
quem se habitue a isso.
Não acredito em fantasmas, mas muitos dos pacientes
que perdi (alguns deles com anos de convivência) vaguearam pelos meus sonhos,
pelos meus pensamentos quando acordado, pelas minhas lembranças. Não sendo meus
familiares, cada um deles significou para mim uma perda, por muito que as
lágrimas não tenham caído. Assisti ao último suspiro de familiares de outros,
esse é, talvez, o maior fardo que tive que suportar.
E não, não há nenhuma cadeira na Universidade que nos
ensine a lidar com a morte dum paciente e com todos os sentimentos inerentes a
ela. E não, não temos um botão “On/Off” que nos permita desligar os nossos
pensamentos/sentimentos quando entramos ou saímos do local de trabalho.
O Jorge enfermeiro é o mesmo que no dia-a-dia se
dedica de corpo e alma àqueles (e àquilo) de quem gosta e ama. Mas, cada vez
mais, a minha profissão molda a minha maneira de ser e agir. Por muito que diga
que não trago trabalho para casa, e acreditem que tento fazer por isso, é
impossível que muito do que sinto e passo no meu trabalho como enfermeiro não
me acompanhe para fora daquelas paredes.
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