Eu trabalho há quase 3 anos para um conjunto de pessoas a quem os anos já pouco dizem, a quem as vicissitudes com que a vida se lhes deparou se notam nas marcas profundas dos seus corpos e almas.
De vez e quando aparece alguém “jovem”, na casa dos 40-65 anos. Porém, é coisa muito rara de se ver no meu serviço. Loucura, insanidade, demência…vários nomes que nos dizem praticamente o mesmo, que quem sofre destes males já não tem a capacidade cognitiva que teve em tempos. Mas vamos com calma, não é bem assim.
Qualquer pessoa, num determinado momento da vida, descontextualizada de uma determinada situação, pode ser considerada tola, demente, o que lhe queiram chamar. Porém, não quer dizer que o sejam sempre, quem conhece bem essas pessoas sabe como se comportam normalmente no dia-a-dia.
Com os “meus” velhinhos passa algo do género. Não digo que não tenham uma diminuição cognitiva acentuada. Têm, muitos deles bastante acentuada, que até me fazem duvidar do meu estado de normalidade! Contudo, há aqueles doentes que há primeira vista não têm muito para dar, parece que vivem num mundo completamente à parte, só seu, mas escondem lá no seu interior vestígios das pessoas que foram antigamente.
Eu não me afasto dos meus doentes, eu aproximo-me deles, falo com eles, dou-lhes mimos, dou-lhes sermões…brinco com eles como se fossem meus amigos de toda a vida. E para meu espanto, já vi momentos de lucidez absoluta em pessoas que pareciam perdidas, para todo o sempre, naqueles seus sonhos acordados.
Apesar de tudo o que disse, há uma doente, que apesar do muito pouco que teria para dar, é aquela por quem sinto um carinho (muito) especial. Já quase me morreu nas mãos, eu e a minha colega de turno fizemos tudo para reverter a situação e felizmente conseguimos. Foi das primeiras vezes que senti que algo que fiz “trouxe” de novo alguém à vida.
Vamos por partes. Esta doente, a quem eu carinhosamente chamo “a minha bebé”, é a “C”, tem 60 anos, deve ter 1 m e 50 cm e à nascença trouxe uma amiga para toda a vida, de seu nome Síndrome de Down. São as duas inseparáveis, olhinhos à chinês, as linhas da palma da mão diferentes do resto do mundo, as constantes infecções respiratórias e insuficiências cardíacas, uma visão bastante turva…e uma língua descomunal que ela com tanto orgulho exibe! Para não falarmos das poucas palavras que sabe dizer (olá, bom dia, boa noite, sim, não, água…ah, e sabe dizer o seu nome completo!). Tudo isto parece ser ela a dizer ao mundo “SOU DIFERENTE”…mas quando me sorri ou dá uma daquelas gargalhadas sinceras e espontâneas muito próprias dela, é como se me dissesse “SOU ESPECIAL”!
E pode ter a certeza que o é. Sou profissional e todos os meus doentes são cuidados com o mesmo profissionalismo. Como em tudo na vida, gostamos sempre mais de uns que de outros e o nosso maior carinho vai para quem gostamos mais. É assim que as coisas funcionam, não adianta vir com hipocrisias. E o meu carinho foi conquistado por quem menos se esperaria, por aquela pessoa que menos pediu quando lá chegou.
Todos os dias lhe faço a mesma pergunta “Eres guapa?” e a resposta é invariavelmente a mesma “Sí!” Vê-se mesmo que é mulher!
É por isso, que todas as manhãs, antes de vir embora, vou-me despedir dela…às vezes está a dormir, outras acordada e não me liga puto, mas basta que me dê um sorriso dos dela, para sair de lá com um estado de espírito…como hei-de dizer…mais leve!