sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Uma espécie de simulacro

 Os tempos que estamos a viver fazem-me relembrar aqueles da minha infância quando estava na escola e de repente soava a campainha, de forma ininterrupta. Sabíamos todos de antemão o que era, um simulacro de incêndio. E lá íamos nós em fila, juntos à parede no interior dos edifícios a caminho do campo de futebol, seguindo a voz serena do(a) Professor(a) (tamanha tranquilidade em cenário desastroso davam uma aura de heróis a quem nos guiava no meio do desastre). Além de se matar uma aula, estes simulacros eram levados com sorrisos, com brincadeira, querendo nós mostrar que sabíamos os procedimentos a seguir.

Fazendo o contraponto com a situação atual, foram os “professores” apanhados desprevenidos por um incêndio que começou bem longe, mas que com as brisas das sociedades modernas depressa se alastrou ao resto do mundo. Sem saber muito bem os procedimentos a seguir, sem demonstrarem aquela tranquilidade que eu via nos meus professores da infância, fizeram o que era mais lógico fazer, jogaram e bem pelo seguro.

Porém o tempo foi passando, os serviços de forma geral, mas fundamentalmente os da saúde, reorganizaram-se. Os números subiram de forma controlada, estabilizaram e voltaram a descer, nunca chegando perto dos números esperados (há muitos fatores que explicam os números noutros países e no nosso). Tudo parou, uma paragem que de certeza não precisava de ter sido tão longa, levando a números que assustam mais que a COVID-19, mas para os quais não há contagem diária (absurda diga-se)

De repente volta-se à vida, supostamente a uma nova normalidade, a meu ver com poucas diferenças relativamente ao pré-COVID (já estou a pôr de parte medidas faz de conta). Sobe o número de casos, mas com pouco impacto a nível hospitalar. São fundamentalmente jovens que trabalham e que socializam…assintomáticos na sua maioria. Depois critica-se pessoas por se tornarem casos positivos por fazerem o que as entidades competentes permitiram que se fizesse, apesar do “saiam, mas não saiam”, “convivam, mas não convivam”, “podem ir jantar até 20, o ideal era serem da mesma bolha, mas a 2 metros uns dos outros. Ficam com o restaurante só para vocês”. Não se permite miúdos treinarem livremente, mas permite-se que se 10 ou 22 corram atrás duma bola.

E que dizer dos 14 dias de isolamento profilático que, neste momento e a meu ver, é mais uma medida fantasiosa. Estipulou-se os 14 dias pois seriam os dias que os sintomas, no máximo, demorariam a surgir. Na altura, os assintomáticos de que se falava eram aqueles que, podendo não ter sintomas, no espaço desse período os desenvolveriam. E agora que sabemos que podem não se desenvolver?

Finalizo com o crime de Reguengos de Monsaraz, mais uma nódoa negra para um governo que já tem sangue que chegue nas mãos. Há uns anos fora Pedrogão. Não lêem relatórios como se isso apagasse os acontecimentos atrozes que aconteceram…ou simplesmente porque não interessa O Presidente clama eternamente por responsáveis. Responsabilidades? No circo do momento, assistimos a um jogo de ténis para a culpa morrer solteira. Mas não vai morrer, pois para esta corja “culpa” é palavra que nunca chegou a nascer. Sejam eles de direita ou de esquerda, os principais partidos têm responsabilidades por anos a fio em que a competência foi sempre substituída por compadrios. Depois queixam-se dos extremistas que nascem a olhos vistos e que de forma perigosa vão ganhando terreno.

 De uma pandemia que nos assombrou a todos, podemos passar a uma descredibilização total se não houver coerência e bom senso. Que me parece não existirem por questão de orgulho. Atenção, não entro em teorias da conspiração nem digo que a COVID-19 não existe. Existe e é para levar a sério, tem que se proteger de forma eficaz os grupos de risco, mas sem hipotecar mais o futuro das gerações mais novas.

Questiono, quando acabará o simulacro?

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Uma luz ao fundo do túnel...


Passou um mês e meio desde a entrada desta famigerada pandemia no nosso país, tomando conta das nossas vidas e da nossa liberdade.
Portugal viu-se obrigado a mudar, fecharam restaurantes, cinemas, shoppings…fecharam cabeleireiros(as), esteticistas, lojas de vestuário…fecharam-se as pessoas em casa.
E tudo o que não fechou teve que, muito rapidamente, se readaptar às novas (grandes) exigências.
A face mais visível serão sempre todos os profissionais que trabalham 24h sobre 24h nos nossos hospitais, soldados finais no combate entre a vida e a morte, a quem rendo o meu devido agradecimento. As chamadas “linhas da frente”.
Permitam-me, podendo sempre ser contrariado, rejeitar esta ideia de linhas da frente e linhas de retaguarda. O objetivo máximo passa por evitarmos ao máximo a lotação dos ventiladores e dos profissionais que os sabem manusear. E isso é papel de todos nós.
Por isso as linhas da frente são…
Todas as pessoas que se encontram em isolamento em casa, que cumprem com todos os cuidados recomendados, sendo eles próprios agentes de saúde pública.
Todas as forças de segurança, imperativas no controlo eficaz de quem não cumpre e na sensibilização da população.
Todas as instituições de cariz social, nomeadamente os lares, que longe de estarem preparados para algo assim (se nem hospitais estavam) têm, a meu ver, papel primordial em atrasar/evitar a lotação do SNS. É lá que sem encontra a maior parte de pessoas de risco elevado. E apesar de tudo, de alguns percalços e atitudes pascais inconcebíveis, têm feito um trabalho de mérito.
Todos os hospitais e unidades da RNCCI que não são de acolhimentos de casos de COVID-19, mas que continuam a ter fluxo de doentes. Muitas vezes, o maior perigo é aquele que não se vê ou que não se espera. E sabemos que pessoas infetadas podem não ter escrito na testa “COVID-19”.
Eu, que trabalho numa unidade da RNCCI, acabo de ser rendido, juntamente com outros valorosos colegas, após dias consecutivos de labor intenso. E a intensidade, entenda-se, não é só a física. O ponto de exaustão deve-se à junção do esforço físico com o desgaste emocional acrescido. O medo…medo de, apesar de todos os cuidados, sermos porta de entrada para o vírus. Porque lidando de perto com pessoas, na sua maioria debilitadas, não posso ter a arrogância de pensar que nada tenho e que não posso falhar. Penso e repenso todos os meus passos e intervenções, por mim, por eles, pelos colegas e pelos meus. Contrariando esse medo, a vontade de continuar a cuidar de quem precisa, mesmo que atualmente tenhamos que assumir que cada um pode ser um possível infetado. Mas mais que isso, continuam a ser pessoas.
Como disse, acabo estes dias exausto, mas com um sentimento de dever cumprido. Palavra a toda a equipa que agora sai comigo…fomos e somos capazes. Aos que entram (que são minha equipa, mas apenas separados pelas circunstâncias) …tenho toda a confiança em vocês e no que vão fazer. A todos, é um orgulho crescer enquanto pessoa e profissional no vosso meio.
São vocês que me fazem ver a luz ao fundo do túnel.

sexta-feira, 20 de março de 2020

A janela do meu quarto...medo ou esperança?


Esta é a visão que tenho da janela do meu quarto, a primavera a querer florescer contrasta com um país recolhido ao seu casulo.
Os dias, que ainda são poucos, tardam a passar, sendo ocupados com coisas para as quais antes não tinha tempo. Há muito que não tinha a calma nem a paciência para ver um filme seguido ou ler avidamente umas cem páginas dum livro.
As conversas com amigos distantes são mais no sentido de saber se está tudo bem, após uma praga que não deixou ninguém de fora.
Sei, tenho a certeza para mim, que ainda serão muitos os dias em reclusão, cada vez mais difíceis com o passar do tempo, mas com uma necessidade que se manterá inalterável. É bom que tenhamos todos consciência que quando o panorama voltar a ser animador teremos todos que manter um controlo apertado de todos os cuidados que estamos a ter. Durante alguns meses será sempre ténue a fronteira entre correr tudo bem e o correr tudo muito mal.
Olho lá para fora, as cores vivas a despontar enquanto o meu ser vive mergulhado em sombras, receios e dúvidas. Tenho medo, claro que tenho. Por mim, pelas pessoas que por esse mundo fora estão a lutar, acima de tudo por aquelas que o fazem e farão ao meu lado, mas, principalmente, pelas pessoas que amo.
Contudo, é por todos eles e por mim que tenho esperança, são eles que me dão a força e a vontade de enfrentar os meus receios e de querer ansiosamente vestir o meu uniforme. Acredito que, apesar das dificuldades, tudo se vai resolver e vamos continuar a poder tornar os nossos sonhos em realidade. E, quem sabe, viver melhor do que vivemos até agora…ou, simplesmente, viver.

sábado, 14 de março de 2020

Tempos de incerteza


Olho para tudo o que tem acontecido nos últimos dias e apenas consigo ver um avançar galopante de algo que desconhecemos.
É COVID-19 para aqui, coronavírus para acolá, é especialistas a irem a todos os programas televisivos a explicarem de forma clara e simples a perigosidade da questão e vejo as pessoas apenas a ficarem com uma coisa na cabeça…”é uma infeção simples, uma gripe um pouco pior, muitas vezes sem sintomatologia.” Isto e a nossa capacidade de ouvirmos apenas o que queremos ouvir. Tapa-se olhos e ouvidos para o “o perigo maior é a propagação e o aumento do número de casos, que levará à falta de meios para atender a todos.”
Vemos tomadas de decisão que muitos questionam “não poderiam ter sido tomadas antes?”, ao que muitos contrapõem com um “claro que não, tem que ser consoante o avançar da situação”. Aceitaria isto se um povo latino como o nosso, a simples dois países de distância, não estivesse neste momento enterrado num inferno que eles próprios ajudaram a cavar. Porque eles também iam para a praia há uns dias atrás, aos cafés, aos cinemas, às feiras, às festas, a tudo o que nós também não soubemos dizer não.
Nós, aqui neste cantinho à beira-mar plantado, habituado à ligeireza das grandes crises, arrogantemente acreditamos que éramos diferentes dos nossos primos italianos, espanhóis ou franceses.
Enquanto muitos já se encontram em pleno teatro de guerra, eu e muitos como eu aguardamos que ele chegue até nós, porque vai chegar. Por um lado, perplexo e irritado pela iliteracia comunitária dum povo cada vez mais licenciado, mestrado e doutorado…por outro, rendido ao ver a lição dada pelos doentes que vou tendo a meu cargo e de quem ninguém fala. Sim, que apesar deste vírus não deixamos de te outras situações graves e menos graves a decorrer ao mesmo tempo e que necessitam de cuidados.
A uns pede-se para não sair de casa e não o conseguem fazer porque não querem alterar hábitos de vida, os outros lutam para recuperar autonomia que lhes permita o regresso ao seu lar. A estes, que já sentiam o peso da ausência dos seus, mesmo que mitigado pelo carinho profissional de quem os cuida, que já viram o seu dia-a-dia forçosamente alterado, foi-lhes retirado (e bem) aquilo que lhes dava uma alegria e motivação extra…o amor dos seus, nas, muitas vezes curtas, visitas semanais.
Incrível a compreensão e o exemplo que recebemos de pessoas, na maior parte idosas e sem ou com baixa escolaridade, que resignadamente dizem “tem que ser, eu sei. Não se preocupe.” Pessoas que se focam no que é mais importante para elas, a sua recuperação. É por elas que visto a farda de cada vez que entro no hospital e são elas que me dão a serenidade para enfrentar o desconhecido que está por vir. Os “milagres” que já vi acontecer em determinados doentes (no qual nós somos apenas a última - mas não menos importante - etapa), fazem-me ver que temos profissionais capazes, munidos de conhecimento, coragem e altruísmo para enfrentar tamanho desafio.
Neste momento vive-se dia-a-dia, apesar de ainda haver quem desvalorize o que aí vem tapando os olhos às recomendações mundiais. Usa-se as dúvidas de quem sabe para justificar a manutenção dos hábitos de vida, quando elas deviam de ser o maior impulsionador para nos prevenirmos.
Chamaram-nos de selvagens, criminosos ou assassinos ainda há bem pouco tempo atrás quando apenas reivindicávamos aquilo que achávamos justo, não o esqueço. Muitos deles que agora partilham imagens, correntes ou que seja a favor dos profissionais de saúde. Dispenso. Fiquem em casa, lavem as mãos, não tussam ou espirrem para cima dos outros, não saiam de casa se acham que estão infetados, sejam inteligentes. É a maior prova de apoio que podem dar a quem não vos vai abandonar quando mais precisam.