sexta-feira, 26 de março de 2021

Pontos de viragem

Como seres humanos tendemos, excetuando talvez os casos de fé, a acreditar apenas no que vemos ou experienciamos. Torna-se difícil de acreditar que certas coisas nos podem acontecer. Por muito que afirmemos “pode acontecer a qualquer um”, não há uma consciencialização efetiva dessa verdade. Senão não se fumava, não se tinha uma alimentação desequilibrada, não se falaria ao telemóvel a conduzir, não se excederiam limites de velocidade, não se entraria no mar com bandeira vermelha, etc. Se assim fosse, às tantas viveríamos tolhidos pelo medo e não se vivia.

Tudo isto para dizer que são poucos aqueles que já se imaginaram privados das suas capacidades, daquelas que nos fazem seres autónomos de forma a desempenharmos as mais simples tarefas quotidianas.

Em qualquer serviço hospitalar a incapacidade, total ou parcial, momentânea ou permanente, é, quem sabe, o maior desafio que se coloca ao doente. Não direi aos profissionais pois, dependendo da tipologia do serviço, o foco pode variar.

Trabalhando na área da reabilitação, área que descobri lentamente e a qual me preenche profissionalmente, o repto principal quer de profissional quer do doente é a incapacidade deste último. O dia-a-dia é focado na reaprendizagem do que ser perdeu.

Podendo variar de caso para caso, talvez a capacidade a que mais se dá valor é o andar. Não são poucas as vezes que ouvimos a pergunta “já anda?” Contudo há mais, muito mais além do andar.

Largas vezes o processo de reabilitação decorre de forma lenta, com pequenos ganhos impercetíveis a quem tem ânsia de ver progressos, doente e família. E isto causa desânimo, frustração, desesperança. Da experiência (pouca) que tenho, foram alguns os casos que pareciam “perdidos” até que houve um ponto de viragem. A maioria destes casos, a mudança correspondeu com o primeiro banho de chuveiro, após dias, semanas ou meses a tomar banho num leito. Algo que todos fazemos diariamente, inconscientes de tudo o que é preciso para o tornar algo tão fácil. Noutros casos, deu-se com conseguir comer sozinho, conseguir sentar-se na cama ou simplesmente dar uns passos.

Há pessoas que nos chegam relativamente bem dentro do possível, com vontade e com um potencial evidente de que vão melhorar. Mas a mim desafiam-me mais as outras, em que a falta de força leva à falta de vontade, que o desespero leva à falta de esperança. Dá-me “pica” a busca de pontos de viragem, por muito complicada que seja e exija paciência que às vezes penso não ter. Apraz-me ver a satisfação e agradecimento no olhar e expressão dos doentes quando nos deixam, mas nada paga o momento em que se renova a esperança a alguém.

E isto apenas se consegue com um trabalho em equipa, em que cada elemento, na sua área específica e nas áreas comuns, procura dar as respostas que os doentes procuram. Sempre no sentido de devolver as pessoas à vida.



sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Uma espécie de simulacro

 Os tempos que estamos a viver fazem-me relembrar aqueles da minha infância quando estava na escola e de repente soava a campainha, de forma ininterrupta. Sabíamos todos de antemão o que era, um simulacro de incêndio. E lá íamos nós em fila, juntos à parede no interior dos edifícios a caminho do campo de futebol, seguindo a voz serena do(a) Professor(a) (tamanha tranquilidade em cenário desastroso davam uma aura de heróis a quem nos guiava no meio do desastre). Além de se matar uma aula, estes simulacros eram levados com sorrisos, com brincadeira, querendo nós mostrar que sabíamos os procedimentos a seguir.

Fazendo o contraponto com a situação atual, foram os “professores” apanhados desprevenidos por um incêndio que começou bem longe, mas que com as brisas das sociedades modernas depressa se alastrou ao resto do mundo. Sem saber muito bem os procedimentos a seguir, sem demonstrarem aquela tranquilidade que eu via nos meus professores da infância, fizeram o que era mais lógico fazer, jogaram e bem pelo seguro.

Porém o tempo foi passando, os serviços de forma geral, mas fundamentalmente os da saúde, reorganizaram-se. Os números subiram de forma controlada, estabilizaram e voltaram a descer, nunca chegando perto dos números esperados (há muitos fatores que explicam os números noutros países e no nosso). Tudo parou, uma paragem que de certeza não precisava de ter sido tão longa, levando a números que assustam mais que a COVID-19, mas para os quais não há contagem diária (absurda diga-se)

De repente volta-se à vida, supostamente a uma nova normalidade, a meu ver com poucas diferenças relativamente ao pré-COVID (já estou a pôr de parte medidas faz de conta). Sobe o número de casos, mas com pouco impacto a nível hospitalar. São fundamentalmente jovens que trabalham e que socializam…assintomáticos na sua maioria. Depois critica-se pessoas por se tornarem casos positivos por fazerem o que as entidades competentes permitiram que se fizesse, apesar do “saiam, mas não saiam”, “convivam, mas não convivam”, “podem ir jantar até 20, o ideal era serem da mesma bolha, mas a 2 metros uns dos outros. Ficam com o restaurante só para vocês”. Não se permite miúdos treinarem livremente, mas permite-se que se 10 ou 22 corram atrás duma bola.

E que dizer dos 14 dias de isolamento profilático que, neste momento e a meu ver, é mais uma medida fantasiosa. Estipulou-se os 14 dias pois seriam os dias que os sintomas, no máximo, demorariam a surgir. Na altura, os assintomáticos de que se falava eram aqueles que, podendo não ter sintomas, no espaço desse período os desenvolveriam. E agora que sabemos que podem não se desenvolver?

Finalizo com o crime de Reguengos de Monsaraz, mais uma nódoa negra para um governo que já tem sangue que chegue nas mãos. Há uns anos fora Pedrogão. Não lêem relatórios como se isso apagasse os acontecimentos atrozes que aconteceram…ou simplesmente porque não interessa O Presidente clama eternamente por responsáveis. Responsabilidades? No circo do momento, assistimos a um jogo de ténis para a culpa morrer solteira. Mas não vai morrer, pois para esta corja “culpa” é palavra que nunca chegou a nascer. Sejam eles de direita ou de esquerda, os principais partidos têm responsabilidades por anos a fio em que a competência foi sempre substituída por compadrios. Depois queixam-se dos extremistas que nascem a olhos vistos e que de forma perigosa vão ganhando terreno.

 De uma pandemia que nos assombrou a todos, podemos passar a uma descredibilização total se não houver coerência e bom senso. Que me parece não existirem por questão de orgulho. Atenção, não entro em teorias da conspiração nem digo que a COVID-19 não existe. Existe e é para levar a sério, tem que se proteger de forma eficaz os grupos de risco, mas sem hipotecar mais o futuro das gerações mais novas.

Questiono, quando acabará o simulacro?

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Uma luz ao fundo do túnel...


Passou um mês e meio desde a entrada desta famigerada pandemia no nosso país, tomando conta das nossas vidas e da nossa liberdade.
Portugal viu-se obrigado a mudar, fecharam restaurantes, cinemas, shoppings…fecharam cabeleireiros(as), esteticistas, lojas de vestuário…fecharam-se as pessoas em casa.
E tudo o que não fechou teve que, muito rapidamente, se readaptar às novas (grandes) exigências.
A face mais visível serão sempre todos os profissionais que trabalham 24h sobre 24h nos nossos hospitais, soldados finais no combate entre a vida e a morte, a quem rendo o meu devido agradecimento. As chamadas “linhas da frente”.
Permitam-me, podendo sempre ser contrariado, rejeitar esta ideia de linhas da frente e linhas de retaguarda. O objetivo máximo passa por evitarmos ao máximo a lotação dos ventiladores e dos profissionais que os sabem manusear. E isso é papel de todos nós.
Por isso as linhas da frente são…
Todas as pessoas que se encontram em isolamento em casa, que cumprem com todos os cuidados recomendados, sendo eles próprios agentes de saúde pública.
Todas as forças de segurança, imperativas no controlo eficaz de quem não cumpre e na sensibilização da população.
Todas as instituições de cariz social, nomeadamente os lares, que longe de estarem preparados para algo assim (se nem hospitais estavam) têm, a meu ver, papel primordial em atrasar/evitar a lotação do SNS. É lá que sem encontra a maior parte de pessoas de risco elevado. E apesar de tudo, de alguns percalços e atitudes pascais inconcebíveis, têm feito um trabalho de mérito.
Todos os hospitais e unidades da RNCCI que não são de acolhimentos de casos de COVID-19, mas que continuam a ter fluxo de doentes. Muitas vezes, o maior perigo é aquele que não se vê ou que não se espera. E sabemos que pessoas infetadas podem não ter escrito na testa “COVID-19”.
Eu, que trabalho numa unidade da RNCCI, acabo de ser rendido, juntamente com outros valorosos colegas, após dias consecutivos de labor intenso. E a intensidade, entenda-se, não é só a física. O ponto de exaustão deve-se à junção do esforço físico com o desgaste emocional acrescido. O medo…medo de, apesar de todos os cuidados, sermos porta de entrada para o vírus. Porque lidando de perto com pessoas, na sua maioria debilitadas, não posso ter a arrogância de pensar que nada tenho e que não posso falhar. Penso e repenso todos os meus passos e intervenções, por mim, por eles, pelos colegas e pelos meus. Contrariando esse medo, a vontade de continuar a cuidar de quem precisa, mesmo que atualmente tenhamos que assumir que cada um pode ser um possível infetado. Mas mais que isso, continuam a ser pessoas.
Como disse, acabo estes dias exausto, mas com um sentimento de dever cumprido. Palavra a toda a equipa que agora sai comigo…fomos e somos capazes. Aos que entram (que são minha equipa, mas apenas separados pelas circunstâncias) …tenho toda a confiança em vocês e no que vão fazer. A todos, é um orgulho crescer enquanto pessoa e profissional no vosso meio.
São vocês que me fazem ver a luz ao fundo do túnel.

sexta-feira, 20 de março de 2020

A janela do meu quarto...medo ou esperança?


Esta é a visão que tenho da janela do meu quarto, a primavera a querer florescer contrasta com um país recolhido ao seu casulo.
Os dias, que ainda são poucos, tardam a passar, sendo ocupados com coisas para as quais antes não tinha tempo. Há muito que não tinha a calma nem a paciência para ver um filme seguido ou ler avidamente umas cem páginas dum livro.
As conversas com amigos distantes são mais no sentido de saber se está tudo bem, após uma praga que não deixou ninguém de fora.
Sei, tenho a certeza para mim, que ainda serão muitos os dias em reclusão, cada vez mais difíceis com o passar do tempo, mas com uma necessidade que se manterá inalterável. É bom que tenhamos todos consciência que quando o panorama voltar a ser animador teremos todos que manter um controlo apertado de todos os cuidados que estamos a ter. Durante alguns meses será sempre ténue a fronteira entre correr tudo bem e o correr tudo muito mal.
Olho lá para fora, as cores vivas a despontar enquanto o meu ser vive mergulhado em sombras, receios e dúvidas. Tenho medo, claro que tenho. Por mim, pelas pessoas que por esse mundo fora estão a lutar, acima de tudo por aquelas que o fazem e farão ao meu lado, mas, principalmente, pelas pessoas que amo.
Contudo, é por todos eles e por mim que tenho esperança, são eles que me dão a força e a vontade de enfrentar os meus receios e de querer ansiosamente vestir o meu uniforme. Acredito que, apesar das dificuldades, tudo se vai resolver e vamos continuar a poder tornar os nossos sonhos em realidade. E, quem sabe, viver melhor do que vivemos até agora…ou, simplesmente, viver.

sábado, 14 de março de 2020

Tempos de incerteza


Olho para tudo o que tem acontecido nos últimos dias e apenas consigo ver um avançar galopante de algo que desconhecemos.
É COVID-19 para aqui, coronavírus para acolá, é especialistas a irem a todos os programas televisivos a explicarem de forma clara e simples a perigosidade da questão e vejo as pessoas apenas a ficarem com uma coisa na cabeça…”é uma infeção simples, uma gripe um pouco pior, muitas vezes sem sintomatologia.” Isto e a nossa capacidade de ouvirmos apenas o que queremos ouvir. Tapa-se olhos e ouvidos para o “o perigo maior é a propagação e o aumento do número de casos, que levará à falta de meios para atender a todos.”
Vemos tomadas de decisão que muitos questionam “não poderiam ter sido tomadas antes?”, ao que muitos contrapõem com um “claro que não, tem que ser consoante o avançar da situação”. Aceitaria isto se um povo latino como o nosso, a simples dois países de distância, não estivesse neste momento enterrado num inferno que eles próprios ajudaram a cavar. Porque eles também iam para a praia há uns dias atrás, aos cafés, aos cinemas, às feiras, às festas, a tudo o que nós também não soubemos dizer não.
Nós, aqui neste cantinho à beira-mar plantado, habituado à ligeireza das grandes crises, arrogantemente acreditamos que éramos diferentes dos nossos primos italianos, espanhóis ou franceses.
Enquanto muitos já se encontram em pleno teatro de guerra, eu e muitos como eu aguardamos que ele chegue até nós, porque vai chegar. Por um lado, perplexo e irritado pela iliteracia comunitária dum povo cada vez mais licenciado, mestrado e doutorado…por outro, rendido ao ver a lição dada pelos doentes que vou tendo a meu cargo e de quem ninguém fala. Sim, que apesar deste vírus não deixamos de te outras situações graves e menos graves a decorrer ao mesmo tempo e que necessitam de cuidados.
A uns pede-se para não sair de casa e não o conseguem fazer porque não querem alterar hábitos de vida, os outros lutam para recuperar autonomia que lhes permita o regresso ao seu lar. A estes, que já sentiam o peso da ausência dos seus, mesmo que mitigado pelo carinho profissional de quem os cuida, que já viram o seu dia-a-dia forçosamente alterado, foi-lhes retirado (e bem) aquilo que lhes dava uma alegria e motivação extra…o amor dos seus, nas, muitas vezes curtas, visitas semanais.
Incrível a compreensão e o exemplo que recebemos de pessoas, na maior parte idosas e sem ou com baixa escolaridade, que resignadamente dizem “tem que ser, eu sei. Não se preocupe.” Pessoas que se focam no que é mais importante para elas, a sua recuperação. É por elas que visto a farda de cada vez que entro no hospital e são elas que me dão a serenidade para enfrentar o desconhecido que está por vir. Os “milagres” que já vi acontecer em determinados doentes (no qual nós somos apenas a última - mas não menos importante - etapa), fazem-me ver que temos profissionais capazes, munidos de conhecimento, coragem e altruísmo para enfrentar tamanho desafio.
Neste momento vive-se dia-a-dia, apesar de ainda haver quem desvalorize o que aí vem tapando os olhos às recomendações mundiais. Usa-se as dúvidas de quem sabe para justificar a manutenção dos hábitos de vida, quando elas deviam de ser o maior impulsionador para nos prevenirmos.
Chamaram-nos de selvagens, criminosos ou assassinos ainda há bem pouco tempo atrás quando apenas reivindicávamos aquilo que achávamos justo, não o esqueço. Muitos deles que agora partilham imagens, correntes ou que seja a favor dos profissionais de saúde. Dispenso. Fiquem em casa, lavem as mãos, não tussam ou espirrem para cima dos outros, não saiam de casa se acham que estão infetados, sejam inteligentes. É a maior prova de apoio que podem dar a quem não vos vai abandonar quando mais precisam.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

AVC…o acidente que ninguém espera


São muitas as doenças que nos podem levar, num abrir e fechar de olhos, dum estado de perfeita autonomia a um estado de completa dependência de outros. Da minha curta experiência profissional, são os AVC’s os responsáveis pelas situações mais delicadas e de prognóstico mais reservado no que à recuperação diz respeito.
É daquelas coisas que todos já ouvimos algum dia falar, sabemos o que fazer para prevenir, mas continuamos a achar que acontece sempre e apenas aos outros, o que nos leva a manter hábitos de vida que potenciam o acontecimento dum episódio destes.
Muitas vezes os estudos e as nossas preocupações incidem nas taxas de mortalidade das doenças, porém no que toca aos AVC’s (e não só) o real impacto não se deve medir apenas pelas mortes causadas, mas sim pelo nível de incapacidade que provocam ao indivíduo. Sendo frio na análise e não querendo ferir suscetibilidades, traz muito mais implicações (para a família, para o estado, para a sociedade) a sobrevivência dum doente com AVC do que a sua morte.
É verdade que os tratamentos imediatos e os centros de reabilitação espalhados pelo país vão permitindo cada vez mais uma melhor qualidade de vida, não deixa de ser importante o reforço da prevenção, passando sempre pela mudança de hábitos de vida não saudáveis.
O AVC assusta-me…às sequelas físicas associam-se muitas vezes danos cognitivos, sendo estes responsáveis por impossibilitarem ou dificultarem o processo de reabilitação. Assusta-me que num dia uma pessoa possa estar a desenvolver a sua vida normal e no dia seguinte está numa cama dum hospital sem saber quem é ou de onde é. Sem saber o que faz ou porque o faz. É a perda completa do que somos.
Tanto podemos ter uma mente intata num corpo afetado, como um corpo intato numa mente desorganizada…ou então as duas coisas. Em qualquer dos casos voltamos à velha e grande questão, a batata quente nas mãos das famílias, muitas das quais sem meios nem tempo para fazer face a todas as novas exigências que o familiar apresenta.
E do que vou vendo, os acidentes cérebro vasculares surgem em idades mais precoces, o que significa, nos tempos que correm, mais anos vividos com menor qualidade de vida.





quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Um caminho sempre em construção


A completar vinte e oito anos de prática marcial e fazendo uma retrospetiva de todas as experiências que o Karate me proporcionou, devo reconhecer que muito do que sou devo-o a tudo o que absorvi do que me foi transmitido, em grande parte pelo Sensei Marinho.
Tenho-me como alguém de rígidos princípios morais (não confundam com religiosos), em que a distinção entre o bem e o mal, o certo e o errado, sempre imperaram desde cedo na minha atuação no dia-a-dia. Com isto, ando longe de dizer que não erro ou que não possa fazer o mal, mas sei que quando isso acontecer será de forma inadvertida ou pensando que estou a tomar a melhor decisão.
E no fundo é isto, acima de tudo, o que me desafio a passar às crianças que nos são confiadas pelos pais para iniciarem connosco a prática do Karate. Talvez o maior dos desafios, sendo que a melhor forma de ensinar é pelo exemplo. E eu sei que o que eu sou, os meus alunos terão tendência a imitar de forma aumentada.
Vivendo num mundo tão competitivo, das mínimas coisas às maiores, tendemos a criar crianças que não têm tempo de o ser, tornando-se ansiosas, nervosas e falsamente seguras que se derrubam à mínima contrariedade, ou pequenos ditadores, desrespeitadores com a autoridade (seja ela qual for) ou com os colegas, que pensam que tudo gira à sua volta.
Pela minha experiência, alguma como praticante, curta como instrutor, qualquer uma destas vítimas da sociedade tem lugar nesta arte marcial (e noutras). E sim, digo vítimas porque a uma criança pouco ou nada pode ser imputado, pois são o que foram ensinadas/formatadas a ser.
Este sim, a meu ver, é o grande papel seja do Karate ou de qualquer outra atividade desportiva. A vertente de atividade física, que não deve nunca ser descurada, é a nossa melhor ferramenta para transmitir tudo o resto. Só há uma coisa que me dá mais gozo que ver um aluno nosso a dar os primeiros passos marciais ou a receber um prémio numa prova desportiva, ver que o faz de maneira superior, com disciplina, com respeito pelos colegas/adversários, pelo Sensei, pelos árbitros ou pelos pais. Se assim não for, qualquer medalha será de latão por muito ouro que reluza ou qualquer cinto apenas servirá de adorno, independentemente da sua cor.
Em poucos anos como instrutor, já com um largo número de crianças que passaram pelas minhas mãos, retirei delas a maior das aprendizagens…mais do que criar campeões numa sociedade cheia deles, preocupa-me sim formar crianças com valores, numa sociedade vazia deles.